O filme Nina é um trabalho precisamente rebuscado, de grande efeito estético e um exercício criativo. O longa nacional do pernambucano Heitor Dhalia tem livre inspiração em "Crime e Castigo" do escritor russo Dostoiévski - traça um diálogo e traz referências sutis, contextos e certas situações que remetem à obra. A trama foca em Nina (Guta Stresser), uma jovem gótica bissexual, rebelde e de grande sensibilidade ativa que busca meios de sobrevivência na metrópole desumana de São Paulo. Mas, só esbarra em dificuldades e adversidades tempestivas. Logo no início do filme, observa-se que ela tem grandes distúrbios psico-emocionais. Totalmente imatura, com ímpetos de impulsividade e anti-social. Sem muita perspectiva financeira e sem parentes próximos, vive com muito custo num apartamento cuja proprietária, Dona Eulália (Myriam Muniz), tem prazer em provocar desentendimentos e desmede cobranças constantemente. Com um mal-humor e acidez ranzinza, Eulália condiciona a vida da inquilina num inferno assustador. A senhoria tende a provocar, confiscar o dinheiro que a mãe envia a Nina e até viola a correspondência num ato contra à privacidade. Ela por dificuldades tanto emocionais quanto financeiras, tende a viver no limite do condicionamento privativo e autoritarismo da velha decrépita. E os desentendimentos são constantes: Eulália tranca a geladeira a cadeado, impede que ela tenha acesso aos alimentos; age com ironias e rispidez e externa sua impaciência grosseira gratuita. Nina se depara com uma atmosfera de crueldade, insensatez e desconforto onde vive. E é na rua, fora do apartamento onde vive em constante aflição, que ela tende a ser libertina: neo-gótica, universitária falida e artista fracassada, procura amigas prostitutas e traficantes; entre sexo com mulheres e homens, encontra na droga um consolo; sua válvula de escapa são boites frenéticas repletas de sexos promíscuos nos banheiros, beijos a três e amizades ocasionais. Ela precisa do sexo para se libertar? Eis o universo underground vivenciado pela protagonista do filme: entre transas sexuais com estranhos, conversas existenciais com prostitutas e alimentando-se de lanches em bares de pé de escada. Sem dinheiro, tende a estar predestinada à incerteza: seria necessário prostituir-se para viver? E é neste quadro de sobrevivência que se compreende o caos: ela passa a demonstrar crises mentais, ao passo que desenvolve uma relação de ódio e sufoco com a inquilina. Sua insatisfação beira à ira compulsória, tanto que ela passa a ter desejo de cometer um assassinato para se livrar da tensão relacional com a senhora Eulália. Eis aí a proximidade com o universo de Dostoiévski: Nina é esquizofrênica, sofre de alucinações constantes e, aos poucos, não consegue mais atenuar seu descontrole psíquico - o que atira numa densa trajetória de problemas de relacionamento com as pessoas, num progresso de paranóia e crises inabaláveis de depressão. À beira do precipício da própria ausência da existência, ela mostra-se desequilibrada e é tragada pela sua loucura: passa a ter visões, acha que é perseguida e até acredita que matou Eulália num acesso de fúria. Será que houve, de fato, um crime? Ou seria apenas uma ilusão de sua consciência desequilibrada? O roteiro escrito por Dhalia e Marçal Aquino pauta essa relação da percepção de Nina: ora ela caminha na superfície da realidade, ora ela permeia imersa na configuração de sua própria loucura intensificada. Torturada psicologicamente pela velha e sempre sobre o efeito das drogas Nina entra num mundo de ilusões e em certo momento não sabe mais o que é realidade e o que não é. A raiva de Nina em relação à Dona Eulália é descarregada/extravasada em seus desenhos (estilo mangás japoneses), que simbolicamente mostram o ódio daquela por esta. Envolvida nos fantasmas de seu inconsciente, envolvida num crime que acredita ter cometido, será ela punida? Cenas de um assassinato não saem de sua cabeça, e ela leva em frente essa loucura. Mas como conseguirá conviver com a culpa? O roteiro foca nessa atmosfera perceptiva da garota que é refém de sua própria consciência - no tormento de não saber livrar-se do pecado e do conflito de existencial. E o longa é todo sob seu ponto de vista. A opressão dela não vem do ambiente externo, mas sim de sua própria mente. A direção de Dhalia extrai uma atuação talentosa de Guta Stresser: totalmente concentrada, personifica a densidade da personagem. E Myriam Muniz domina todas as cenas, numa caracterização assustadora. Tecnicamente bem concebido, a trilha sonora envolvente de Antônio Pinto promove um clima sensível e denso ao filme - repleto de loops de música instrumental, como uma espécie de delírio sonoro da paranóia de Nina, repetindo à exaustão. Os delírios da protagonista são concebidos em forma de animação, trabalho feito pelo desenhista Lourenço Mutarelli. Há uma edição ágil e direção de arte ousada de Akira Goto e Guta Carvalho. A bela fotografia prioriza tons soturnos e tinge tudo com sombras, um primoroso trabalho estético que prioriza um apuro visual gótico. A experimentação da narrativa, a criatividade e a estética auxiliam na concepção deste filme eficiente. Participações rápidas, mas não menos importantes, de Wagner Moura, Selton Mello, Lázaro Ramos, Matheus Nachtergaele, Renata Sorrah e Guilherme Weber fortalecem o filme. Por pautar questões de sexualidade, solidão e loucura. Na nuance da realidade com a ficção - o sentimento da protagonista é evidenciado. Inquietante filme com ponto de vista maniqueísta do que se vive hoje, onde o bem e o mal se confundem bem como os entraves da realidade e imaginação. Para quem gosta de obscurantismo e psicopatia, é um prato cheio: uma atmosfera bizarra, desoladora e demente perpassa todo o filme. Um longa cyber-punk-gótico, por ser cheio de referências à estética do zine, HQ e contracultura, mas sempre com um olhar "negro" sobre as possibilidades dessas linguagens. Ótimo drama psicológico.

Crítica retirada daqui http://apimentario.blogspot.com/